terça-feira, 5 de maio de 2015

DESACATO NÃO É CRIME. RECOMENDAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ES

A Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo emitiu a Recomendação Conjunta n. 02/2015, publicada hoje no Diário Oficial, indicando a impossibilidade de criminalização do DESACATO. O Empório do Direito publicou decisão do Juiz Alexandre Morais da Rosa no mesmo sentido (aqui). Vale a pena conferir abaixo:

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
RECOMENDAÇÃO CONJUNTA SUBDEFENSORIA E CDH
Nº 02/2015
Considerando ser a Defensoria Pública instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º e art. 134 da Constituição Federal, da Lei Complementar 80/94 e da Lei Complementar nº55/94 do Estado do Espírito Santo;
Considerando que a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais constituem objetivos da Defensoria Pública, estampados no artigo 3º-A, inciso I, da Lei Complementar 80/94;
Considerando que incumbe a Defensoria Pública zelar pela efetiva aplicação dos Tratados Internacionais de Diretos Humanos dos quais o Brasil seja signatário;
Considerando a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25/09/1992;
Considerando a importância da divulgação de dispositivos internacionais úteis ao desenvolvimento da atividade do Defensor Público, bem como a importância de fomentar o controle de convencionalidade;
Considerando que o artigo 7º, inciso IV, da Lei Complementar Estadual 55/94, dispõe sobre a competência do Subdefensor Público Geral para supervisionar a atuação das Coordenações da Defensoria Pública;
Considerando que os artigos 17, I, “c” e 21, inciso III, do supramencionado diploma legal, dispõem, respectivamente, sobre a atribuição administrativa da Coordenação de Direitos Humanos de defesa, planejamento e supervisão, visando à satisfação dos interesses difusos e coletivos das minorias marginalizadas, bem como sobre a atribuição de planejar, coordenar, desenvolver, fiscalizar e supervisionar atividades afetas à respectiva coordenação, providenciando medidas necessárias à efetivação dos projetos, programas e metas da instituição, zelando para sua consecução;
Considerando a necessidade de amparo ao servidor e ao Defensor Público em atuação junto aos órgãos de execução, bem como a importância de atuação similar para fortalecimento institucional;
RESOLVEM, por tais razões, a Subdefensoria Pública Geral, em conjunto com a Coordenação de Direitos Humanos, expedir a  seguinte recomendação:
A incriminação por desacato,  delito previsto no artigo 331 do  Código Penal, afronta o artigo  13 da Convenção Americana de  Direitos Humanos (Pacto de San  Jose da Costa Rica), ao impedir  que o cidadão manifeste-se  criticamente diante de ações  e atitudes dos funcionários  públicos, no exercício de sua função. Desta forma, RECOMENDA-SE aos Defensores Públicos que sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo  das ações judiciais, utilizando  como instrumento o controle de  convencionalidade.
JUSTIFICATIVA
Dispõe o artigo 331, do Código Penal:
Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Desacatar, por sua vez, significa desrespeitar o funcionário público, no exercício de sua função ou em razão dela, com a finalidade de tutelar o prestígio da Administração Pública. Verifica-se, assim, que a norma penal afronta o princípio da legalidade, na medida em que não há a definição taxativa da conduta delituosa, cabendo ao magistrado o reconhecimento dos atos que configuram ou não o crime, autorizando perigosa imputação penal  subjetiva.  Além disso, o referido dispositivo tem sido utilizado para estabelecer  e reforçar a concepção equivocada da superioridade estatal em relação ao indivíduo, provocando verdadeiro temor que impede a manifestação crítica do sujeito diante de atos praticados por  funcionário público.
A sua permanência no mundo jurídico provoca desestímulo ao surgimento de ideias plurais, indesejáveis à Administração Pública, violando, flagrantemente, o sistema democrático e a liberdade  de expressão, direito fundamental  que contempla a possibilidade de buscar, receber e difundir informações livremente. Por esta razão, tem-se entendido que a incriminação por desacato apresenta-se incompatível com artigo 13, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao conferir  proteção diferenciada ao Estado  em relação ao indivíduo, obstando o controle dos atos abusivos pela  sociedade de maneira indistinta.
A população é a destinatária dos serviços estatais e a incriminação por desacato obsta o direito de todo cidadão de avaliar o desempenho das funções públicas, atingindo não  apenas a liberdade de expressão, mas comprometendo a própria eficiência de sua prestação.
De fato, o múnus público exercido por um servidor lhe atribui um dever de urbanidade e presteza para com a população. Assim, se há uma posição jurídica que deve ser protegida é a do indivíduo, sujeito ao poder estatal. O crime de desacato se mostra como um privilégio inadmissível com o Estado Democrático de Direito.
Ademais, os casos existentes de qualquer desrespeito à atuação legal e correta das autoridades  públicas podem ser suficientemente resolvidas no âmbito civil e  administrativo, sendo a invocação  do direito penal desproporcional e  ofensiva ao princípio da intervenção mínima que, na maioria dos casos, revela uma tendência autoritária e equivocada da função da ‘autoridade’.
Neste ínterim, foi aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2000,  Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, direito inscrito no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos,  restando consignado o enunciado  de nº 11 nos seguintes termos:
 “11. Los funcionarios públicos están sujetos a un mayor escrutinio  por parte de la sociedad. Las leyes que penalizan la expresión ofensiva dirigida a funcionarios  públicos generalmente conocidas  como “leyes de desacato” atentan contra la libertad de expresión y el derecho a la información.”
É válido ressaltar, inclusive, que já foram proferidas decisões nacionais sobre a inexistência do crime de desacato (processo nº 0000951-45.2013.403.6005 – Justiça Federal do Estado do Mato Grosso do Sul; processo nº 0067370-64.2012.8.24.0023 – Justiça Estadual de Santa Catarina), e  que alguns países sul-americanos já aboliram do seu ordenamento o  referido crime, como é o caso da Argentina.
No Brasil, o anteprojeto Código Penal, elaborado pela comissão de juristas através do Requerimento 756 de 2011, de autoria do senador Pedro Taques e aditado pelo de Requerimento 1.034 de 2011, com aprovação pelos senadores  da República em 10 de agosto de  2011, deixou de prever o desacato  como crime, mostrando uma clara  tendência de que o delito em questão despareça do ordenamento jurídico nacional.
Assim, a incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), motivo pelo  qual sugere-se que os membros da instituição sustentem a atipicidade  da conduta e a absolvição do indivíduo nesta hipótese, em atenção ao controle de convencionalidade, considerando o status supralegal das normas internacionais que disponham sobre direitos humanos (ou mesmo constitucional, caso aprovadas nos  termos do art. 5º, parágrafo 3º, da CRFB), em consonância com  entendimento já consolidado pelo  Supremo Tribunal Federal.
Vitória, 23 de abril de 2015.

Phelipe França Vieira
Subdefensor Público-Geral

Fonte: http://emporiododireito.com.br/

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